28.10.05

Decomposição

Walter Pinto



- Espoca fora, moleque!
O grito saia forte, no mesmo instante em que o cajado descia rápido, na cabeça do vivente que estivesse na reta.
Ninguém ousava disputar com o velho Mané do Banjo a primazia sobre o produto depositado, todo dia, no leito da rua. Eram os anos 50. E aquele, o lixo da cidade.
O velho era muito velho. Por essa época, diziam que teve uma desilusão amorosa. Tornou-se um bêbado, perdeu o emprego, vendeu a casa e foi morar no meio do lixo. Cavucou por muitos anos até a prefeitura transferir o lixão para os lados do Aurá. Morreu de desgosto, não suportando mais outra desilusão.


Diariamente, canais que cortam Belém depositam cerca de 70 toneladas de carga orgânica na baía do Guajará.

Havia duas coisas que faziam o Babôco delirar. Uma era fumar uns tarugos enormes que vinham no lixo da Sousa Cruz. Apreciava, sobretudo, os cigarros grandes, de vinte centímetros, refugo que não passava pela máquina de cortar. Com um cigarro daqueles na mão, o Babôco parecia um rei. Havia classe naquele moleque esmirrado, de barriga inchada e pernas tuíras, de pouco mais de sete anos. O modo como os dedos seguravam o cigarro, a calma tranqüila dos bons apreciadores, a fumaça levemente jogada para cima, denunciavam – quem saberia? – alguma antiga nobreza perdida.
A outra coisa que fazia o Babôco delirar era comer barro. Uma compulsão, uma vontade desenfreada que começava furando aqui, futucando ali, cutucando acolá e quando dava por si, já estava a parede toda cheia de buracos.
A mãe bem que tentou, colocando-o de castigo, trancado no banheiro. Mas a casa era toda de barro. Babôco não resistia. Um dia, a velha casa, enfraquecida pelo solapar das paredes, veio abaixo. A mãe morreu soterrada. Babôco passava o dia olhando para os escombros, pesaroso, enquanto a fumaça do cigarro descrevia macilentas curvas no ar fétido.

Seguindo a maré, a matéria orgânica em decomposição é conduzida pela correnteza, deixando um rastro brilhante de chorume nas águas.

Um dia minha mãe proibiu que olhássemos à janela. Trancou-as todas. Só restou-nos ouvir os ruídos medonhos dos terçados se cruzando na briga terrível do velho Vanderlei com Seu Raimundo. Brigaram por causa de um poço que o segundo encomendara ao primeiro.
Vanderlei recebeu o pagamento adiantado e tratou de cavar o poço. Logo encontrou água. Mas água insalubre, própria de lençol contaminado por chorume. Deu a obra por concluída. Seu Raimundo, porém, exigiu devolução do dinheiro.
Não chegando a nenhum acordo, cada um se armou de terçado e a questão foi resolvida no meio da rua, entre terçadadas que levantaram faíscas, segundo relato de pessoas que assistiram a refrega.
Vanderlei não devolveu o dinheiro, nem cavou outro poço. Morreu naquele mesmo dia.

Parte da matéria que desce o rio vai ficando pelas margens, onde crianças tomam banho, fingindo ser praia o que não passa de lama.

Um dia apareceu um homem se dizendo químico. Tinha montado uma fábrica de detergente sanitário e precisava de latas vazias de óleo para envasar o produto.Chegou para negociar com os catadores a compra das latas coletadas no lixo. Pagaria cinco centavos por cada. Os velhos catadores não deram bola, mais preocupados em arranjar o que comer. As crianças, porém, foram à cata.
Durante os dias da semana, montanhas de latas foram se acumulando nos quintais das casas. O químico apareceu no sábado com uma fubica caindo aos pedaços. Comprou todo o estoque. Para a molecada, dias de luxo, cinema e revistinhas de caubói. Acertou-se nova entrega para o sábado seguinte. Foi então, que o negócio revelou o mau-caráter do Rolinha, o tratorista da Limpeza Pública.
Sem que ninguém soubesse, Rolhinha baixou o preço da lata. Depois deu uma carteirada: cercou o lixão usando a prerrogativa de funcionário da Limpeza Pública. Botou placa contratando quem quisesse catar lata a 1 centavo. Ganhou muito dinheiro. Seis meses depois, foi demitido do emprego e escorraçado pelos catadores.

Icoaraci, a Vila Sorriso, é a primeira parada dos coliformes fecais conduzidos pelas águas barrentas da baía de Guajará.

Às 5 da manhã, o Abílio passava para o trabalho. Descia e subia as montanhas de lixo acumulado. Era açougueiro em São Braz. Passava calmo e sereno, em seu jaleco de trabalho imaculadamente branco.
Às 5 da tarde voltava em frangalhos, trôpego, exalando longe a maldita cachaça. Já não era mais o Abílio. A molecada chamava-o de Bebe Água. Ninguém acreditava que daria contar de atravessar a cadeia de lixo erguida à sua frente, mas ele conseguia.
Dona Maria Madeirinha, nossa vizinha, dizia sempre que Deus protegia as criancinhas e os bêbados. Bem, isso ela dizia antes de se tornar evangélica, quando ainda apreciava uns gorós. Mas ela mudou, é preciso que reconheçamos. Quem nunca mudou foi o Bebe Água. Ou melhor, salvo entre 5 da manhã e 5 da tarde.

Outeiro é o segundo porto visitado pela carga fétida. As águas contaminadas não afastam os banhistas, quase todos da periferia de Belém.

No barraco da Zilica pendiam do teto centenas de bonecas, a grande maioria sem cabeça ou perna. Havia, na regularidade impressionante da disposição delas, uma paixão de colecionador e uma sensibilidade de artista autodidata.
Zilica se ocupava apenas e tão somente de catar bonecas. Não queria saber de restos de comida, bebida ou qualquer outra coisa que poderia se transformar em dinheiro. Dali só queria bonecas.

Enfim, os coliformes se espalham por todas as praias do Mosqueiro,
Ilha até recentemente chamada de bucólica pelo saudoso colunista
.

Alheio ao mundo que o rodeava, o Narciso quase não era percebido. Dormia a maior parte do dia e desaparecia do barraco à noite. Às vezes, sumia por meses.
Só lembrávamos dele quando a rádio-patrulha dobrava a esquina, cantando pneus e cuspindo bala para tudo quanto é lado. Narciso, então fugia pelos fundos, ganhava os outros quintais e ia se refugiar bem longe dali. Era assaltante profissional, coisa que o Sabará, ladrão de galinha, pé-de-chinelo, nunca conseguiu ser, até que um dia foi encontrado morto, perfurado de balas, sobre um monte de lixo da Lobrás, entre sonhos de valsa mofados, frutas podres e moscas varejeiras.

(*) Walter Pinto de Oliveira é jornalista.

Um comentário:

Anônimo disse...

Aprendi muito