21.1.08

O Lixo, no Mundo. O Mundo, no Lixo

Por Mino Carta, em seu blog.

Nunca, nos últimos cinqüenta anos, as organizações mafiosas ficaram tão ricas e a Igreja Católica tão saliente. Sinais de uma Itália em grave dificuldade, cuja metáfora é a monstruosa crise do lixo não recolhido que avassala Nápoles invadida por seus próprios dejetos e envergonha a nação toda.
O enredo napolitano, que devolve à cidade cenários da Idade Média, encontra suas raízes na crescente expansão da Camorra, a máfia da Campânia, e na rivalidade entre suas diversas facções, a repetirem em outro cenário a guerra dos morros cariocas. Com a agravante de que em Nápoles estamos no chamado Primeiro Mundo.
A coleta e a incineração do lixo dependem de estruturas controladas pelos camorristas e a crise mancomuna a todos eles em uma nítida e subversiva tentativa de atingir o próprio Estado. O qual, cabe sublinhar, não agiu quando ainda seria possível com êxito, ao se delinear o risco, há mais de dez anos.
Crescente o poder mafioso. E crescente o poder eclesiástico, de sorte, neste terreno, a suscitar a resistência laica. Último episódio, o abaixo-assinado por 67 professores da Universidade La Sapienza de Roma contra a visita de Bento XVI, prevista para a quinta 17, no quadro das celebrações do 705º aniversário do mais antigo ateneu da capital.
A iniciativa dos mestres recebeu a adesão de muitos estudantes, prontos a encenar manifestações de desagrado caso o papa cumprisse o programa, a prever, inclusive, um discurso. Na terça 15, Bento XVI anunciou sua desistência, a bem da “ordem pública”, e a mídia, no dia seguinte, lamentou contrita o ocorrido salvo raras exceções. Os partidos da direita solidarizaram-se prontamente com o Vaticano, mais comedidos, políticos de centro-esquerda não deixaram de fazê-lo, enquanto o próprio presidente da República, Giorgio Napolitano, enviava ao papa uma carta pessoal.
Para domingo 20, a Santa Sé organiza uma grande manifestação na Praça de São Pedro, debaixo das janelas do apartamento papal, e é fácil imaginar o fervor dos fiéis ofendidos pelos lentes de La Sapienza e seus alunos. Ocorre que a política italiana, que a partir dos anos 50 foi capaz de se afastar das pressões religiosas mesmo no tempo dos governos democrata-cristãos, hoje cede-lhes espaço e recoloca em questão regras de vida aceitas há tempo pelas sociedades contemporâneas.
Quem reage parece correr a ameaça da condenação por heresia. Mas nunca um papa mereceu tantas atenções por parte da mídia italiana, não somente berlusconiana, mas também da RAI, a tevê estatal, que põe no vídeo Bento XVI várias vezes ao dia. Visões diferentes a respeito dos justos comportamentos de um Estado laico, como convém, figuram entre os motivos da divisão da Itália em duas porções praticamente iguais em tamanho e peso. O governo de Romano Prodi, às vésperas de completar seu segundo aniversário, não cumpriu boa parte de suas promessas eleitorais e luta para sobreviver. Conseguiu reduzir drasticamente o déficit público, mas o país sofre problemas de crescimento, em níveis inferiores à média européia, com a perspectiva de um ano muito difícil por causa dos efeitos da possível recessão americana.
A Itália não poderia sair incólume de cinco anos de governo Berlusconi, mas o centro-esquerda tem graves culpas em cartório, a começar pela demora em enfrentar a reforma eleitoral, indispensável para que os italianos tenham condições de votar em candidatos em lugar de partidos, que até hoje administraram os resultados eleitorais a seu talante.
Neste quadro, mais um raio risca o céu carregado. O ministro da Justiça, Clemente Mastella, líder de um pequeno partido, chamado Udeur, acaba de ser submetido à investigação policial e se demite. Sua mulher, Sandra, presidente do Conselho da Região Campânia, fica em prisão domiciliar. Ambos acusados por vários crimes, em primeiro lugar por concussão. Campânia, terra da Camorra

3 comentários:

Francisco Rocha Junior disse...

Juca, sobre o assunto do post, gostaria de fazer três comentários.
1. É engraçado o Mino Carta reclamar de, na Itália, os italianos terem que votar em partidos. Enquanto isso, aqui no Brasil, a opinião pública (inclusive o próprio Mino) reclama do voto em candidatos, pugna por uma reforma política que reforce os partidos e elogia o establishment quando ele o faz - como na decisão do STF, ano passado, sobre fidelidade partidária e na atual onda de cassação de políticos-macaco, que pulam de galho em galho (ou de partido em partido) após as eleições.
2. Li a reportagem na Carta Capital. Sem mais questionamentos, a tendência é logo esbofetear a Igreja Católica, que hoje tem à frente um papa dito conservador. Mas pergunto: João Paulo II também não o era? E não foi o papa anterior o rei da mídia, o mais pop dos portadores do Anel do Pescador? Parece-me, ao menos, que Bento XVI é claro em sua intenção de uma Igreja Católica menor, formada por fiéis que possam seguir à risca suas regras de conduta. É mais honesto e menos contraditório que posar de ecumênico e antenado com as reivindicações do rebanho e, na hora H, vetar o uso de camisinha, condenar o divórcio e fazer ouvidos moucos às revelações de padres pedófilos.
Evidentemente, o que faço são simples apontamentos. Ainda não há distanciamento histórico seguro para obter respostas, creio eu.
3. Não entendi a correlação entre a Camorra e a Igreja. Mino tenta estabelecer uma vinculação direta entre a Máfia e o Vaticano, como em "O Poderoso Chefão III", ou somente pretende demonstrar que entre as duas "instituições" (se é que se pode assim chamar a Máfia) há a direita e, mais particularmente, Silvio Berlusconi?

Unknown disse...

Nobre, vou comentar os dois últimos tópicos, pois não acompanhei as teses de Mino sobre partidos e candidatos. Assumo a sua.
Ressalto, apenas, que a (necessária) reforma não elimina a legitimidade, e até a oportunidade, do voto focado principalmente no candidato.

2. Independente de seus comentários - se vc ler o texto novamente vai perceber a crítica que Mino faz à mídia, a mesma que incensou João Paulo II - o Papa não se manca em querer visitar a mais respeitada universidade romana para fazer proselitismo.
Inaceitável!
As teses de Bento, sepultadas nas brumas da História, (ainda) podem cair bem nos templos crédulos. Lá é o seu (delas)lugar.

3. Entendi como a ligação entre a Camorra e o estado italiano, não com a Santa Madre.
De fato, como fartamente demonstrado, Berlusconi é um bandido.

Abs, nobre.

morenocris disse...

...e a mídia, no dia seguinte, lamentou contrita o ocorrido, 'salvo raras exceções'...

Elas sempre existirão! Amém!

Beijos.